Pesquisar este blog

sábado, 31 de março de 2012

Os direitos fundamentais das mulheres e as políticas públicas de promoção da igualdade pelo combate à violência doméstica



O artigo analisa a vinculação do Judiciário aos direitos das mulheres na aplicação de normas a políticas públicas pelo combate à violência doméstica.
Soraia da Rosa Mendes


Nos últimos vinte anos duas histórias correm paralelas. A primeira é a história da luta das mulheres para sua liberação e pelos seus direitos, ou seja, a história do feminismo. E a segunda é a história do desenvolvimento e da expansão da reivindicação dos direitos humanos na qual as mulheres desempenham um papel-chave. (JELIN, 2006, p. 253). Por outro lado, também a história do constitucionalismo é a história da progressiva ampliação da esfera pública reivindicadora de direitos fundamentais. História esta que não é teórica, mas política e social, dado que nenhum direito fundamental ‘caiu do céu’. Mas, pelo contrário, foi conquistado mediante rupturas institucionais que vão desde a revolução americana e francesa, até as lutas operárias, pacifistas, ecologistas e, obviamente, feministas. (FERRAJOLI apud PISARELLO, 2005, p. 39/40)
O artigo a seguir analisa, sob a perspectiva constitucionalista, a vinculação do Judiciário aos direitos fundamentais de proteção e participação das mulheres na aplicação de normas referentes a políticas públicas de promoção da igualdade pelo combate à violência doméstica. Tema que, principalmente a partir da entrada em vigor da Lei Maria da Penha no Brasil, provoca instigante discussão acerca do controle de constitucionalidade das normas penais e para o qual a teoria democrática feminista haverá de contribuir muito.
Com a finalidade de apresentar os primeiros passos da pesquisa em desenvolvimento sobre o tema, este texto reporta-se à definição dos direitos fundamentais de proteção e participação, ao delineamento do princípio da igualdade enquanto igualdade nos direitos fundamentais, e à vinculação do Judiciário aos mesmos nos marcos do Estado Democrático de Direito brasileiro em que autonomia pública e privada são, necessariamente, complementares. Reserva-se para as próximas etapas do estudo em curso o aprofundamento do enfoque sobre o controle de constitucionalidade e a norma penal, ou o melhor seria dizer, os próprios fundamentos do direito penal a partir de uma análise garantista (enquanto teoria geral do direito) e feminista (enquanto teoria democrática).
O trabalho encontra-se referenciado no garantismo de Luigi Ferrajoli, na concepção de esfera pública de Jürgen Habermas, e na teoria democrática feminista de Nancy Fraser. Assim como, no âmbito do constitucionalismo, nas contribuições teoréticas recolhidas em Robert Alexy, Konrad Hesse e Peter Häberle, e em Gilmar Ferreira Mendes e Ingo Sarlet.
Como será demonstrado, decorrente do princípio da igualdade entre homens e mulheres, e nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal de 1988, que determina competir ao Estado assegurar a assistência à família mediante mecanismos que coíbam a violência no âmbito de suas relações, a Lei 11.340/06 é o resultado de um amplo debate na esfera pública pelo reconhecimento dos direitos fundamentais de proteção e   participação das mulheres vítimas de violência no Brasil.
Nos termos da lei, conhecida como Lei Maria da Penha, a violência doméstica e familiar contra a mulher é reconhecida como um impeditivo ao exercício efetivo, dentre outros, dos direitos à vida, à segurança, ao acesso à justiça, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária, prevendo, em consequência, políticas públicas de proteção e promoção de direitos fundamentais de mulheres em situação de violência doméstica.
Contudo, decisões judiciais, em sede de controle difuso, têm declarado a inconstitucionalidade de referida norma jurídica com fundamento em uma ‘possível’ violação do princípio da igualdade entre homens e mulheres. Daí porque, tomando alguns destes pronunciamentos judiciais como paradigmas, o trabalho centra-se na ideia de que, nos marcos do Estado Democrático de Direito, a igualdade tem de ser concebida como garantia da autonomia pública e privada da mulher, cujo reflexo no discurso de aplicação de normas é tanto o que o conduz, como um dos critérios de aferição da efetividade dos direitos fundamentais de proteção e participação.
Sustentar-se-á, em síntese, que, sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, a decisão judicial está vinculada aos direitos fundamentais de proteção e participação das mulheres, de modo que a violência doméstica deva ser interpretada como equivalente a texto cujo significante informa um impeditivo da participação da mulher na esfera pública, vez que subjugada na esfera privada.

A LEI MARIA DA PENHA: UM BREVÍSSIMO RESGATE

Maria da Penha Maia é uma brasileira vítima da violência de seu ex-marido, um professor universitário que tentou matá-la duas vezes. Na primeira vez atirando contra ela, e na segunda tentando eletrocutá-la. Por conta das agressões sofridas, Penha ficou paraplégica. Seu agressor, condenado a oito anos de prisão, ficou preso por dois anos. Foi solto em 2002 e hoje está em liberdade.
O caso chegou à Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). E, em 2001, o Estado Brasileiro foi responsabilizado por negligência e omissão em relação à violência doméstica. Além de ter recebido a recomendação de “simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que possa ser reduzido o tempo processual”.
A partir do caso de Maria o processo de positivação de direitos das mulheres em situação de violência familiar e doméstica ganhou mais fôlego. Razão pela qual, baseado em um anteprojeto elaborado por um grupo de organizações feministas, em 2004, o Executivo enviou ao Congresso Nacional o projeto de lei que, posteriormente, levaria o nome de ‘Lei Maria da Penha’.
Ao longo da tramitação do projeto, o movimento de mulheres provocou a participação popular em diversas audiências públicas, em vários Estados brasileiros. Assim como mobilizou a sociedade através de correspondências encaminhadas para as duas Casas Legislativas solicitando a aprovação do projeto.
A lei teve, portanto, como nascedouro um amplo debate na esfera pública e um processo legislativo participativo impulsionado e acompanhado pela sociedade civil em todas as suas etapas. Como lembra Castilho
A ideia que norteou o grupo de mulheres que, individualmente ou representando organizações, numa reunião realizada em agosto de 2002, no Rio de Janeiro, se comprometeu a lutar por uma lei que regulasse o enfrentamento à violência, era a de produzir uma legislação que reconhecesse este tipo de violência como uma violação aos direitos humanos e que instrumentalizasse o Estado brasileiro em prol das vítimas da violência de gênero. (CASTILHO, 2007)
Conhecida como Lei Maria da Penha, a Lei 11.340/06, entrou em vigor em 22 de setembro de 2006, e prevê a criação de uma rede de assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar, como também, medidas protetivas de urgência a serem deferidas pelo Judiciário. Tais medidas incluem o afastamento do lar, a prisão preventiva do agressor e até políticas referentes ao direito ao trabalho das mulheres violadas.
A implementação da lei, entretanto, está muito aquém do que deveria. Exigindo a permanente mobilização da esfera pública no sentido de garantir, no âmbito judiciário, sua correta interpretação.
A ESFERA PÚBLICA: as bases interpretativas da Lei Maria da Penha a partir do movimento de mulheres 
Em um Estado Democrático de Direito, injustiça significa primariamente limitação da liberdade e atentado à dignidade humana que se manifesta através de um prejuízo que priva os ‘oprimidos’ e ‘submetidos’ daquilo que os capacita a exercer sua autonomia privada e pública. (HABERMAS, 2002b, p. 160)
Daí porque, para Habermas, os direitos subjetivos, cuja tarefa é garantir às mulheres um delineamento autônomo e privado para suas próprias vidas, não podem ser formulados de modo adequado sem que os próprios envolvidos articulem e fundamentem os aspectos considerados relevantes para o tratamento igual ou desigual em casos típicos. (HABERMAS, 2004, p. 305)
Portanto, sob o paradigma de um estado democrático e de direito, é de se requerer do Judiciário que tome decisões que, ao retrabalharem construtivamente os princípios e regras constitutivos do Direito vigente, satisfaçam, a um só tempo, a exigência de dar curso e reforçar a crença tanto na legalidade, entendida como segurança jurídica, como certeza do Direito, quanto ao sentimento de justiça realizada, que deflui da adequabilidade da decisão às particularidades do caso concreto. (CARVALHO NETTO, 2004. p. 38)
É de se observar que as normas válidas são aplicadas somente no âmbito da realidade no qual as circunstâncias contextuais tenham sido circunscritas pela legislação. De modo que a interpretação jurídica no controle de constitucionalidade da Lei Maria da Penha deve operar-se através de um processo argumentativo que pressupõe uma disputa de paradigmas e compreensões do Direito. (CATTONI, 2004 p. 56) E esta disputa de paradigmas é também o resultado da organização da sociedade civil em espaços públicos.
O processo de construção democrática pressupõe não somente a expansão dos direitos e de suas garantias, mas pelo alargamento do Estado de Direito ao maior número de âmbitos da vida e de esferas de poder, onde sejam tutelados e satisfeitos os direitos fundamentais. Pois, são os poderes desregulados que desenvolvem no seu interior os principais ‘obstáculos de ordem econômica e social’ que limitam de fato a liberdade e a igualdade.
É importante destacar que ao discutir a equidade para a participação e a igualdade social necessárias à esfera pública, Fraser reporta a existência de impedimentos informais que podem persistir mesmo após as pessoas terem recebido formal e legalmente o direito de participação. Segundo ela, a pesquisa feminista tem documentado uma síndrome de que, em espaços de discussão mistos, há uma tendência de que os homens interrompam as mulheres mais do que estas os interrompem; que os homens falem mais, por mais tempo, e com maior frequência que as mulheres; e que as intervenções das mulheres sejam, com mais frequência, ignoradas ou não respondidas. Razão pela qual os membros de grupos sociais subordinados, tais como os das mulheres, dos negros e dos homossexuais têm encontrado vantagens em constituir públicos alternativos, que a autora designa como contra-públicos subalternos, contrapostos ao espaço público único. (FRASER, 1992. p. 119)
Para Fraser, os ‘públicos’ seriam cenários paralelos nos quais os membros destes grupos sociais subordinados criam e circulam contra-discursos para formular interpretações condizentes com suas identidades, interesses e necessidades. Nestes espaços próprios, pondera Fraser, seria possível reduzir (embora ela reconheça que não eliminar), as desvantagens enfrentadas em esferas públicas “oficiais”.
Inegavelmente, a participação desigual dos diversos atores na esfera pública mostra que, toda vez que um grupo de desiguais discute alguma questão e algo transparece como de interesse geral, via de regra, este é o dos dominantes ( PINTO, 2004. p. 51). Neste sentido, vão os estudos de Iris Young, Seyla Benhabib e de Nancy Fraser.
De outra via, segundo Habermas, a exclusão de estratos populares, culturalmente e politicamente organizados, provoca, outrossim, a criação de uma multiplicidade de esferas públicas nos mais diversos processos em que as esferas oficiais emergem. Assim, a formação de esferas públicas populares decorre de sua exclusão da esfera pública hegemônica. E, das diferentes maneiras que a exclusão se opera, surgem, consequentemente, as condições de formação dos públicos representativos dos excluídos. (HABERMAS, 1992, p. 426/427)
Portanto, no elenco de características da categoria de espaço público, está a necessidade de percebê-lo marcado pelo signo da pluralidade. Ou seja, não se deve restringir a sua percepção a um domínio único que englobe todas as arenas possíveis de formação discursiva da opinião. Afinal, como aponta a própria Nancy Fraser, “(...) a esfera pública é indispensável para a teoria social crítica e para a prática democrática.”. (FRASER, 1992. p. 110-111).
Enfim, em termos democráticos a esfera pública tem a função de ser um sistema de alarme dotado de sensores não especializados, porém sensíveis no âmbito de toda a sociedade.
(IN)CONSTITUCIONALIDADE DA LEI MARIA DA PENHA: fragmentos de decisões judiciais
A despeito do reconhecimento internacional de que a violência doméstica é um dos fatores que inibem a participação efetiva das mulheres na esfera pública, vez que violadas na esfera privada, e que o princípio constitucional da igualdade não se restringe à formalidade, manifestações públicas de magistrados e decisões judiciais têm combatido a lei sob uma perspectiva pretensamente constitucional.
Neste sentido vão os fragmentos de manifestações judiciais e extrajudiciais recolhidos e a seguir utilizados.
Em decisão da 2ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, em 26 de setembro de 2007, por exemplo, foi confirmada decisão de primeira instância que entendeu pela inconstitucionalidade da Lei Maria da Penha, sob o argumento de que esta normativa desrespeitaria os objetivos da República Federativa do Brasil, violando "o direito fundamental à igualdade entre homens e mulheres".
Em linha similar vai também a(s) sentença(s) do juiz Edilson Rodrigues, da 1ª Vara Criminal e de Menores de Sete Lagoas, Minas Gerais, para quem, vale transcrever:
Para não se ver eventualmente envolvido nas armadilhas dessa lei absurda, o homem terá de se manter tolo, mole, no sentido de se ver na contingência de ter de ceder facilmente às pressões.
E, por fim, ainda, o artigo intitulado “Uma aberração legal” (firmado por uma magistrada trabalhista) no qual lê-se, dentre outras passagens ainda a serem reproduzidas neste artigo, que:
No Brasil, quando o marido bate na mulher, ele não está praticando um ato de ‘violência contra a mulher’. Está praticando um ato de violência contra a mulher dele, o que é completamente diferente.
Acórdãos, sentenças e artigos como os transcritos são, no mínimo, impressionantes, considerando-se que a Constituição Federal de 1988 é um marco a partir do qual se pode, melhor seria dizer se deve, exigir do Judiciário, na aplicação do direito, sensibilidade para interpretar o caso concreto e compromisso com uma normatividade justa. Quanto mais no caso da Lei Maria da Penha, fruto legítimo de um amplo processo de discussão pública.


Fonte: Disponível em:<http://www.cfemea.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=1702:os-direitos-fundamentais-das-mulheres-e-as-politicas-publicas-de-promocao-da-igualdade-pelo-combate-a-violencia-domestica&catid=215:artigos-e-textos&Itemid=149> - Acesso em: 31/03/2012.

Nenhum comentário:

Postar um comentário